Manifestação de pensamento e poder de polícia: análise face ao Estado Democrático de Direito

Resumo: O presente artigo procura abordar alguns aspectos da liberdade de manifestação de pensamento face ao poder de polícia e de algumas manifestações ocorridas em nosso país. Busca-se, em última análise, demonstrar que tanto o cidadão quanto o agente público, devem agir nos estritos limites da ordem jurídica quando se pensa no cotejo desses direitos. 

Palavras-chaves: Estado Democrático de Direito. Manifestação de pensamento. Poder de polícia.

Abstract: The present article tries to address some aspects of the freedom of manifestation of thought in relation to the power of the police and of some manifestations occurred in our country. Ultimately, it seeks to demonstrate that both the citizen and the public agent must act within the strict limits of the legal order when one thinks of the comparison of these rights.

Keywords: Democratic State of Law. Manifestation of thought. Police power.

Sumário: Introdução. 1. O Estado Democrático de Direito. 3. O poder de polícia. 4. As manifestações de pensamento e seus limites. Considerações finais. Referências.

Introdução

A Constituição da República tem em seu bojo, dentre outras, normas concernentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, à forma de governo, à aquisição do poder, à distribuição de competências e, como não poderia deixar de ser, aos direitos fundamentais.

Dentre tais direitos, encontra-se assegurado um amplo acesso à informação a partir de variadas fontes. Nesse contexto, a liberdade do pensar é livre, cabendo a cada pessoa controlar aquilo que pretende exteriorizar.

A propósito, esse direito fundamental está previsto, na Constituição Federal de 1988, nos incisos IV e V do art. 5º, e possui ligações com outros dispositivos, interessando mencionar encontrar-se passível a limites diversos, merecendo análise, inclusive, frente ao poder polícia.

O poder de polícia está relacionado ao poder estatal de império que, para os fins propostos neste texto, pode ser definido como aquele poder que a administração pública tem de proteger os interesses públicos, que, invariavelmente, se contrapõe aos individuais, principalmente, quando da exteriorização de pensamentos, como conceitua José Cretella Júnior:

A polícia é […], a atividade exercida pelo Estado para assegurar a ordem pública e particular mediante limitações impostas à liberdade coletiva e individual dos cidadãos, tem âmbito mais restrito do que o poder de polícia que é a faculdade atribuída pela Constituição do poder legislativo para regulamentar os direitos individuais, promovendo o bem-estar geral” (CRETELLA JUNIOR, 2006, p. 423).

Este poder poderá ser exercido, assim, quando de eventos e manifestações não tranquilas, afim de garantir a ordem pública e a segurança da população.

Sua função, nesse sentido, será resguardar os mais diversos direitos, podendo promover o bem-estar social. Ademais, de acordo com José Maria Pinheiro Madeira “[…] há de ser garantida através de mecanismos de segurança pública, que haverão de ser dotados por órgãos específicos” (MADEIRA, 2000, p. 85).

De todo modo, seu exercício não poderá, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, violar direitos fundamentais, como a liberdade de manifestação de pensamento ou expressão.

Por essa razão, no presente artigo, pretende-se discutir alguns aspectos do direito fundamental à liberdade de manifestação de pensamento e suas correlações com o poder de polícia.

Para apresentar nossas ideias, faremos uma breve análise do Estado Democrático de Direito, quando se procurará deixar claras as possibilidades coletivas e individuais oferecidas pelo mesmo.

Num segundo momento, tratar-se-á do direito fundamental individual manifestação de pensamento e de sua correlação com o poder de polícia. Serão citados, nesse momento, alguns casos concretos ocorridos no Brasil a fim de demonstrar como os interesses aqui trabalhados, por vezes, encontram-se tensionados, reivindicando, por essa razão, reflexões e debates.

1. O Estado Democrático de Direito

O Estado de Direito se apresenta como uma situação jurídica na qual o que impera é a norma jurídica.

Essa consideração é de suma importância, pois sua caracterização tem íntima relação com a proteção e a efetividade dos direitos humanos fundamentais, dentre os quais encontra-se imerso o direito à manifestação de pensamento.

Para Paulo Nader, a elaboração do conceito de Estado de Direito:

“[…] mediante a indicação de caracteres foi considerada por Ulrich Klug uma tarefa plena de dificuldades. Em seu lugar, o jurista alemão adotou o método da delimitação negativa, recorrendo ao modelo de pensamento que denomina por máxima de controle: não haverá Estado de Direito quando uma pessoa puder exercer sobre uma outra um poder incontrolado” (NADER, 2000, p. 135).

Ao que tudo indica, quando Ulrich Klug afirmara requerer o Estado de Direito que uma pessoa não tenha um poder insuscetível de controle sobre as outras, teve em vista, acima de tudo, o direito à liberdade, tão caro ao Estado Democrático de Direito. Basta entender, no entanto, no que consiste este último.

Como conhecido, o Estado Democrático de Direito encontra-se consagrado no caput do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Pelo que se constata, trata-se o instituto do regime de Estado/Governo adotado no território nacional, encontrando diversas conceituações na doutrina constitucional pátria.

A título de ilustração, acerca do seu significado, Miguel Reale, já há algum tempo, escreveu:

[…] é um verdadeiro processo histórico incessante sempre se admitindo uma maior democratização do que é democrático. Não é à toa que o Estado Democrático de Direito é fundado em uma constitucionalização aberta, que define os princípios básicos, mas que permite várias categorias possa ser diferenciado ao longo do tempo” (REALE, 1998, p. 305).

Não se pode negar, pela abertura mencionada por Miguel Reale, o Estado Democrático de Direito é, ao mesmo tempo, um princípio fundamental e a própria ordem que resulta da aplicação desse princípio.

Geisa de Assis Rodrigues aponta três decorrências fundamentais da sua estruturação, as quais se encontram intimamente vinculadas ao valor da cidadania e da dignidade da pessoa humana, fundamentos do Brasil, nos termos, respectivamente, dos incisos II e III do art. 1º da Constituição Federal. São elas: 

“a) a tendência á dimensão participativa da democracia; b) a garantia do acesso á justiça de direitos transindividuais e a concepção de uma instituição especialmente dedicada á defesa da democracia e dos direitos, como o Ministério Público; e c) o compromisso inarredável com a probidade da gestão dos recursos públicos” (RODRIGUES, 2002, p. 10).

Nesse segmento, importa encará-lo como um conceito aberto, passível de diversas denominações jurídicas, agregando os direitos conquistados nos regimes anteriores, liberal e social, sem, entretanto, deixar de fixar “olhos” às transformações sociais atuais e futuras.

A afirmação procede porque o Estado Democrático de Direito pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados Liberal e Social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo.

Tais palavras foram expostas porque o Estado Democrático de Direito, tendo em vista sua consagração constitucional, sucedeu os dois regimes anteriores, sem abandonar, entretanto, suas conquistas, quando se pensa nos direitos normativamente reconhecidos e na busca por sua efetivação.

Fortalecendo essas ideias, pense-se, o Estado Liberal é marcado por uma revolução cujo resultado tem como lema direitos fundamentais individuais e políticos, como vida, liberdade, igualdade, propriedade, votar e ser votado (dentro de certos requisitos), entre outros, enquanto as revoluções provindas do Estado Social tiveram como “pano de fundo” a conquista normativa de direitos fundamentais sociais como, dentre outros, trabalho, saúde e educação, além dos direitos econômicos.

Posto isso, o Estado Democrático de Direito, do nosso ponto de vista, até mesmo porque não há, na literatura jurídica especializada, uma definição que abrace todas as possibilidades pelo mesmo oferecidas, possibilita, além da busca pela consecução dos direitos ora descritos, maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar[1].

2. A manifestação de pensamento na Constituição Federal de 1988

Stuart Mill, um dos principais defensores da liberdade de expressão, argumentou que:

[…] a verdade tem maior probabilidade de vir á tona quando existe um “mercado” de ideias livremente divulgadas e debatidas, de modo que os cidadãos poderão tomar decisões mais acertadas se as diversas opiniões políticas puderem circular sem interferências (MILL, 2006, p. 164).

A difusão de ideias, de tal modo, para além da constatação da verdade, tem importâncias individual e coletiva.

Individual no sentido de que aquele a expressar tem a oportunidade de passar, a outrem, seus posicionamentos, e, eventualmente, ensinamentos.

Coletiva pelo fato de que a diversidade de conhecimentos poderá contribuir para o bom entendimento das relações, para o crescimento grupal e para o reconhecimento do outro como componente social construtor.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no âmbito do art. 5º, incisos IV, V, que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, bem como ser assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

Esse direito à liberdade de manifestação de pensamento, ou de expressão, à luz do inciso IV do art. 5º da Carta Magna, possui diversas conotações e pode ser utilizado de variadas formas, como aduziram Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

“Incluem-se na liberdade de expressão faculdades diversas, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, de críticas, que podem assumir modalidade não verbal (comportamental, musical, por imagem etc.). O grau de proteção que cada uma dessas formas de se exprimir recebe costuma variar, não obstante todas terem amparo na Lei Maior. […] A liberdade de expressão é, então, enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático (o pluralismo de opiniões é vital para a formação de vontade livre)”. […] O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando​-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta​-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano” (MENDES; BRANCO, 2017, p. 233-234).

Como ressaltado outrora e ratificado pelas palavras acima apresentadas, o ser humano contribui para o crescimento e bem-estar social a partir de seus posicionamentos.

Por outro lado, estará o indivíduo suscetível a, também, com suas manifestações, adentrar na esfera de direitos das demais pessoas, sendo, por essa razão, constitucionalmente, vedado o anonimato.

Acerca da importância de se vedar o anonimato, vejamos as palavras de Nathalia Masson:

“Em outros termos: a Constituição prevê que manifestações que causem dano material, moral ou à imagem de outrem, geram, em contrapartida, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização (art. 5°, V). Daí a necessidade de vedar o anonimato, para permitir a identificação do autor e tomar possível a resposta proporcional ao agravo (desagravo), bem como o pleito judicial por indenização decorrente dos danos materiais e/ou morais, ou, também, ações penais em casos de crimes contra a honra” (MASSON, 2016, p. 239).

A liberdade de expressão merece interessante pontuação a partir de um julgado emblemático, proferido pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2011. A referência diz respeito à famosa “marcha da maconha”, ocorrida em São Paulo e que foi objeto de questionamento na Ação Direita de Inconstitucionalidade – ADI nº 4.274, de relatoria do Ministro Ayres Britto.

De acordo com as informações alocadas no documento A Constituição e o Supremo, de propriedade do Supremo Tribunal Federal, no jugado mencionado, restou decidido que:

“[…] A liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas. O direito à livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias. Abolição penal (abolitio criminis) de determinadas condutas puníveis. Debate que não se confunde com incitação à prática de delito nem se identifica com apologia de fato criminoso. Discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis. O sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social. Caráter não absoluto de referida liberdade fundamental (CF, art. 5º, IV, V e X; Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 13, § 5º). […]” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016, p. 67-68).

Deixou-se claro, assim, que o direito analisado não possui caráter absoluto, sofrendo, portanto, limitações.

As maiorias, por essa razão, não têm o condão de dimensionar o pensar, tampouco as manifestações de pensamentos das minorias, sendo deslegitimas eventuais frustações, supressões ou aniquilações a direitos fundamentais. Inclusive:

“[…] A proteção constitucional à liberdade de pensamento como salvaguarda não apenas das ideias e propostas prevalecentes no âmbito social, mas, sobretudo, como amparo eficiente às posições que divergem, ainda que radicalmente, das concepções predominantes em dado momento histórico-cultural, no âmbito das formações sociais. O princípio majoritário, que desempenha importante papel no processo decisório, não pode legitimar a supressão, a frustração ou a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício do direito de reunião e a prática legítima da liberdade de expressão, sob pena de comprometimento da concepção material de democracia constitucional. A função contramajoritária da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito. Inadmissibilidade da “proibição estatal do dissenso”. Necessário respeito ao discurso antagônico no contexto da sociedade civil compreendida como espaço privilegiado que deve valorizar o conceito de “livre mercado de ideias”. […]” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016, p. 67-68).

Não se pode deixar de ressaltar aqui, também, a previsão do inciso IX do art. 5º da Carta da República, cuja previsão consagra ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

O dispositivo constitucional permite afirmar que “[…] em princípio, manifestações não verbais também se inserem no âmbito da liberdade constitucionalmente protegida”. (MENDES; BRANCO, 2017, p. 238). Nesse sentido:

“A expressão corporal, por exemplo, com o intuito de arte engajada, abarca vasta gama de situações. É possível, porém, que comportamentos expressivos (as também chamadas expressões simbólicas) recebam uma ponderação menor quando confrontados com outros valores constitucionais, propendendo por ceder a estes com maior frequência do que a verificada nos casos de expressão direta de pensamento. Percebe​-se, é bem que se diga, que o grau de tolerância para com as expressões simbólicas varia de cultura para cultura, de país para país, como também de tempos em tempos numa mesma localidade. […] No direito brasileiro, a propósito, o STF registra precedente em que se afastou a punição criminal, como atentatória ao pudor, de conduta de certo diretor de teatro, que reagiu a vaias, expondo as nádegas desnudas ao público. Considerou​-se o tipo de espetáculo em que o acontecimento se verificou e o público que a ele acorreu, para se ter, no episódio, o intuito de expressão simbólica como preponderante sobre os valores que a lei penal visa tutelar” (MENDES; BRANCO, 2017, p. 238-239).

Cumpre citar, finalmente, a Constituição Federal prevê limitações expressas à liberdade de expressão, nos termos do art. 220 e do art. 221.

O primeiro regulamenta questões relativas à liberdade jornalística, à vedação de censura de cunhos políticos, ideológicos e artísticos e ao consumo de tabaco, bebidas entre outros.

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade” (BRASIL, 2012, p. 74).

Já o segundo, se refere aos princípios a serem seguidos no que tange à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão. Segundo sua previsão:

“Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (BRASIL, 2012, p. 74).

3. O poder de polícia

A palavra polícia, aplicada no âmbito do senso comum como sinônimo de segurança pública, deverá ser considerada com cuidado para os fins aqui pretendidos, tendo em vista as definições de polícia administrativa e polícia judiciária.

É de se lembrar, a “polícia judiciária”, no que tange ao seu caráter de polícia ostensiva, diz respeito à prevenção e à repressão a prática de infrações penais. Já a polícia judiciária propriamente dita, cuida da investigação de eventuais delitos e de sua autoria.  

Por outro lado, a polícia administrativa “se manifesta por meio de atos preventivos ou repressivos para alcançar o seu mister, qual seja, adequar os direitos dos particulares ao interesse geral” (CARVALHO, 2017, p. 136).

Vale ressaltar, também, sobre o poder de polícia, a distinção relativa aos sentidos amplo e estrito. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho:

“A expressão poder de polícia comporta dois sentidos, um amplo e um estrito. Em sentido amplo, poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Sobreleva nesse enfoque a função do Poder Legislativo, incumbido da criação do ius novum, e isso porque apenas as leis, organicamente consideradas, podem delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. É princípio constitucional o de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, CF). Em sentido estrito, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que consubstancia, como vimos, verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. É nesse sentido que foi definido por RIVERO, que deu a denominação de polícia administrativa. Aqui se trata, pois, de atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores impõem a disciplina e as restrições aos direitos. É nesse sentido que nos concentraremos, porque o tema é inerente ao Direito Administrativo” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 83).

Isso porque o conceito de poder polícia, como fomentamos no primeiro ponto, agrega a expressão de atos normativos e o condicionamento da propriedade e liberdade dos indivíduos.

Em conformidade com a alegação, Matheus Carvalho aduziu:

“A definição do Poder de Polícia tem base legal e doutrinária ricas. Para conceituar Poder de Polícia ficaremos com as palavras de Fernanda Marinela "uma atividade da Administração Pública que se expressa por meio de seus atos normativos ou concretos, com fundamento na supremacia geral e, na forma da lei, de condicionar a liberdade e a propriedade dos indivíduos mediante ações fiscalizadoras, preventivas e repressivas”” (CARVALHO, 2017, p. 135).

Nesse quadrante, a atividade administrativa concernente ao poder de polícia deverá ocorrer nos estritos limites normativos, tanto em sentido amplo como em sentido estrito, pois imporá ao indivíduo comportamentos positivos e negativos.

A título de exemplo de comportamento positivo, o poder de polícia impõe ao indivíduo que preste exame a fim de obter licenciamento para dirigir veículos automotores, ou seja, a Carteira Nacional de Habilitação.

Reforçando o que se alegou, porém, frisando a possibilidade de ocorrência do abuso e do desvio de poder, pode-se afirmar:[…] o excesso de poder é a forma de abuso da própria atuação do agente e já o desvio de poder é a modalidade de abuso em que o agente busca alcançar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 48).

Sem sombra de dúvidas, tanto o abuso de poder quando o desvio, deverão sofrer sanções. É preciso frisar, nesse foco, o princípio da proporcionalidade, já que “[…] não se pode conceber que a coerção seja utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada onde não houvesse necessidade” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 91). Ademais:

“Em virtude disso, tem a doutrina moderna mais autorizada erigido à categoria de princípio necessário à legitimidade do ato de polícia a existência de uma linha proporcional entre os meios e os fins da atividade administrativa. Como bem observa CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, é preciso que a Administração tenha cautela na sua atuação, “nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei”. […] Não havendo proporcionalidade entre a medida adotada e o fim a que se destina, incorrerá a autoridade administrativa em abuso de poder e ensejará a invalidação da medida na via judicial, inclusive através de mandado de segurança” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 91).

Por fim, cumpre apontar, a competência para exercer o poder de polícia é, em princípio, da pessoa federativa a qual a Carta Magna conferiu o poder de regular a matéria, como Hely Lopes Meirelles, abordando o princípio da predominância do interesse, aludiu:

[…] os assuntos de interesse nacional ficam sujeitos á regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional sujeitam-se ás normas e á polícia estadual; e os assuntos de interesse local subordinam-se aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal” (MEIRELLES, 2003, p. 109).

4. As manifestações de pensamento e seus limites

O Brasil foi marcado por protestos e manifestações num período um tanto quanto recente. Podem-se destacar como exemplos desses movimentos a busca por redução das tarifas de ônibus no estado de São Paulo e os gastos futebolísticos com a Copa das Confederações de 2013 e com a Copa do Mundo de 2014, ambas da Associação da Federação Internacional de Futebol – FIFA, realizadas no Brasil.

No evento de 2013, ocorrido em nosso país, com o auxílio das redes sociais, manifestações ocorreram por todo o Brasil, reunindo várias pessoas pelas ruas a protestarem por melhorias em diversos setores sociais.

Durante algumas delas, aconteceram, em muitas cidades, atos de vandalismo, dos quais resultou a destruição de patrimônio público e de alguns particulares. Algumas pessoas foram presas e a polícia, em variados momentos, agiu para se defender e conter alguns exaltados na multidão. Os protestos geraram grande repercussão nacional e internacional.

Ezequiel Fagundes detalha, em seu relato sobre as manifestações corridas em Belo Horizonte, durante a Copa das Confederações, que:

“Como um exemplo característico da manifestação, teve um inicio pacífico na Praça Sete e caminhada pela Avenida Antonio Carlos. O destino dos manifestantes era o Estádio Governador Magalhães Pinto (Mineirão), onde ocorreria um jogo da Copa das Confederações. A confusão teve início quando os manifestantes chegaram à Avenida Abrahão Carãm, próximo ao Mineirão, onde foi realizado jogo entre Japão e México. Durante o tumulto, os manifestantes queriam ultrapassar o perímetro de segurança do Mineirão, para atingir uma concessionária que fica no local. Integrantes da cavalaria, tropa de choque e de outras unidades da Policia Militar, além de homens da Força Nacional de Segurança Pública, usaram bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, disparos de balas de borracha para dispersar os manifestantes, enquanto atacavam a polícia com rojões, pedras, bombas caseiras e coquetéis molotov” (FAGUNDES, 2013, p. 1).

Postas essas considerações, levando-se em consideração que as manifestações pacíficas têm fundamentos válidos e são constitucionalmente asseguradas, como visto, poderia a polícia impedir esse tipo de manifestação contrária, como se percebe, aos interesses dos governos (municipal, estadual e federal)?

Inicialmente, a resposta é não, pois, a polícia, na verdade, deveria se fazer presente única e exclusivamente a fim de manter a segurança da população que resolveu se manifestar pacificamente. É bom que se tenha em mente, qualquer intervenção em manifestações pacíficas importa em abuso, por parte da autoridade, passível de punição.

Cabe a esta mesma polícia, porém, conter aqueles que se misturam às massas populares com a única finalidade de praticar ilícitos penais e civis, maculando, assim, um movimento perfeitamente legítimo e necessário, decorrente, também, do direito de reunião, previsto no inciso XVI do art. 5º da Carta da República:

[…] todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. (BRASIL, 2012, p. 22).

As autoridades (aqui incluídas as Policias Civil, Militar e Federal) devem, portanto, respeitar esses direitos fundamentais que, indevidamente violados, poderão fazer com que a autoridade infratora responda criminalmente pelo delito tipificado no art. 3º, alíneas a, h e i, da Lei nº 4.898, de 09 de Dezembro de 1965, segundo o qual: “Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; […] h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo” (BRASIL, 1965, p. 822).

Consideração finais

A título de considerações finais, cabe salientar, a finalidade deste artigo é fazer algumas reflexões acerca do direito fundamental à manifestação de pensamento ou liberdade de expressão face ao poder de polícia.

Nesse diapasão, levando-se em consideração o caput do art. 1º da Constituição Federal, o qual assevera estarmos diante, no Brasil, normativamente dizendo, de um Estado Democrático de Direito, deve-se conceber que o pensamento é livre, no sentido de que cada um pode pensar e refletir sobre o assunto que quiser e ter a opinião que bem entender, podendo, inclusive, manifestá-los, desde que não seja de forma anônima.

A vedação ao anonimato encontra-se prevista já que se a pessoa é livre para expressar o pensamento, deverá assumir as consequências e responsabilidades de sua manifestação.

Como na vida privada cada qual tem o direito de dizer e fazer o que bem entender, salvo quando isto representar ofensa ou ameaça a direito alheio, a exteriorização do pensamento encontra-se suscetível de ferir os direitos de outrem, assegurando-se a responsabilização daquele que assim agir, nos exatos moldes de suas ações.

As manifestações aqui mencionadas são legítimas reivindicações de mudanças sociais e jurídicas, com vistas a se obter transformações políticas no país, correlatas ao aperfeiçoamento dos serviços públicos em geral e a racionalização de gastos. Se apresentam, logo, como um basta em alto e bom tom, verdadeiro grito de indignação.  

Necessário lembrar, a liberdade do direito de se manifestar e expor suas ideias encontra limites no próprio texto constitucional, sobretudo quando há fundada ameaça de lesão a direitos fundamentais de terceiros, devendo imperar dentro dos limites da civilidade e da legalidade. Sempre que houver incitação à violência ou ofensas gratuitas a pessoas, grupos ou instituições, o poder de polícia se fará valer cessando, assim, esses abusos.

Isso porque o poder de polícia compreende a atividade estatal que limita o exercício dos direitos individuais em nome do interesse e da segurança públicas. Em suma, o interesse público é que fundamenta o poder da polícia. Este, sem aquele, seria o arbítrio, verdadeira ação policial divorciada do Estado de direito. É uma prerrogativa do Estado estabelecida com o intuito de preservar o bem comum, conjunto de valores insculpidos em normas jurídicas que mantém a sociedade em ordem. Portanto, em cada caso concreto, deve-se analisar em que medida o poder de polícia é utilizado legitimamente e, por outro lado, apto a ultrajar direitos dos cidadãos.

É de se ressaltar, a sociedade deve ir além e exercer efetivamente seu poder através de maior fiscalização dos gastos e buscar punição severa para aqueles que comentem atos de improbidade administrativa. É importante para a consecução da paz, da democracia, da segurança, da legalidade e da liberdade, que os agentes públicos e a sociedade civil compreendam não serem inimigos, mas componentes da sociedade, ambos com direitos e deveres.

Os direitos aqui trabalhados, seja do civil ou do agente público, são elementos importantes quando se pensa na convivência social, devendo-os ser usufruídos nos estritos limites da ordem jurídica, para o bem de todos e de cada um.

Para finalizar este texto e sugerir novos trabalhos afim de se discutir os limites da liberdade de manifestação de pensamento na ordem jurídica, citemos caso muito polêmico que protagonizou debates, por todo o país, nas últimas semanas.

Fazemos referência ao fato ocorrido no Museu de Arte Moderna – MAM de São Paulo no qual crianças aparentando dentre 5 e 10 anos de idade interagiram com um homem completamente nu, havendo, até mesmo, uma delas, de aproximadamente 5 anos de idade, acompanhada e, talvez incentivada pela mãe, em virtude das imagens e vídeos postados na mídia, tocado os pés deste, que estava imóvel e deitado sobre o chão.

O registro abriu espaço para se discutir em que medida referida interação encontra-se amparada pelos direitos aqui trabalhados ou, em contrapartida, violaria a ordem jurídica.

Argumentou-se, por um lado, que o MAM sinalizou a sala onde o evento ocorria acerca do conteúdo da apresentação como contendo nu artístico sob a temática panorama da arte brasileira.

De outro, é preciso pensar se as normas constitucionais e legais protetivas à criança e promotoras de seu pleno e sadio desenvolvimento, possibilitam e recomendam ações dessa natureza.

Em outras palavras, conforme desenvolvemos anteriormente, a difusão de ideias, tem importâncias individual e coletiva.

Individual no sentido de que aquele a expressar tem a oportunidade de passar, a outrem, seus posicionamentos, e, eventualmente, ensinamentos.

Coletiva pelo fato de que a diversidade de conhecimentos poderá contribuir para o bom entendimento das relações, para o crescimento grupal e para o reconhecimento do outro como componente social construtor. É preciso avaliar, contudo, se a assertiva se fez presente na hipótese. Pretendemos escrever sobre assunto futuramente.

 

Referências
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Nota
[1] Sobre o Estado Democrático de Direito, desenvolvemos o raciocínio em: DUARTE, Hugo Garcez. A felicidade no Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 159, abr 2017


Informações Sobre os Autores

Lidiane Salgado Cotta

Acadêmica de Direito na FADILESTE

Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE


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