Direito penal do inimigo: solução ou retrocesso?

Resumo: Hodiernamente, o medo e a insegurança se tornam cada vez mais presentes na sociedade de todo o mundo, face às ações criminosas, covardes e extremamente violentas de terroristas, traficantes e criminosos organizados, e potencializados pela mídia de massa. No Brasil, tal sentimento também se faz presente, com os crescentes números de homicídios, latrocínios, estupros e tráfico de drogas. A corrupção desenfreada da classe política, em conjunto com leis ineficazes para conter o avanço da criminalidade, corrobora com o anseio da população por medidas mais enérgicas do Estado no combate à delinquência. A sensação de impunidade paira sobre o povo brasileiro. Com base neste cenário, vem à tona o pensamento de Günter Jakobs, doutrinador alemão que vem incitando polêmicas discussões ao redor do mundo sobre o presente tema, expondo sua filosofia de uma diferenciação dos delinquentes, classificando-os como cidadãos ou inimigos. Esta teoria apresenta-se para muitos como a solução para a violência nas sociedades. Já para outros, uma afronta aos direitos humanos e garantias fundamentais, inerentes a todo ser humano. O debate sobre o tema é instigante, em que muitos alternam seu posicionamento contra e a favor à teoria de Günter Jakobs. Por fim, faz-se necessário uma análise, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, sobre os preceitos da Constituição Federal.

Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo. Sociedade Brasileira. Inconstitucionalidade.

Abstract: Concern came from the fear and insecurity is increasingly more present in society throughout the world, in the face of the criminal actions, cowardly and extremely violent terrorists, drug traffickers and organized criminals, and boosted by the mass media. In Brazil, this feeling is also present, with growing numbers of homicides, robbery, rapes and trafficking of drugs. The rampant corruption of the political class, together with laws ineffective to contain the advance of crime, corroborates with the yearning of the population by more vigorous action by the State in the fight against crime. The feeling of impunity hangs over the Brazilian people. Based on this scenario, comes to the fore the thought of Günter Jakobs academic German who comes by encouraging polemics discussions around the world, on this theme, exposing its philosophy of a differentiation of offenders, classifying them as citizens or enemies. This theory is to many as the solution to the violence in societies. Already for other, an affront to human rights and fundamental guarantees, inherent to every human being. The debate on the subject is provocative, where many alternate its positioning against and in favor of the theory of Günter Jakobs. Finally, it is necessary an analysis in the light of the Brazilian legal system, on the precepts of the Federal Constitution.

Keywords: Criminal Law of the Enemy. Brazilian Society. Unconstitutionality.

Sumário: 1. Introdução 2. Teoria do Direito Penal do Inimigo 3. Críticas ao Direito Penal do Inimigo 4. Direito Penal do Inimigo e a Legislação Brasileira 5. Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Direito Penal do Inimigo é uma teoria de pouco mais de 30 anos, proposta pelo doutrinador alemão Günter Jakobs, que vem dividindo opiniões por todo o mundo ao longo desse tempo. Em síntese, essa teoria divide os criminosos em duas categorias: os recuperáveis e os irrecuperáveis. Na primeira, os indivíduos continuam a ser considerados como cidadãos, sendo julgados pelo ordenamento jurídico de seu país e mantendo seus direitos e garantias individuais. Na segunda, encontram-se os indivíduos considerados irrecuperáveis, sendo tratados como inimigos do Estado e da sociedade, perdendo assim a condição de cidadãos, bem como importantes direitos garantidos ao ser humano. Dessa maneira, o Estado teria condições de eliminar o perigo de reincidência que os “inimigos” trazem à sociedade, através de um tratamento diferenciado, que ofereceria uma segunda chance apenas aos que realmente demonstrarem condições de se integrarem socialmente, sem oferecer perigo.

Direito Penal do Inimigo: Solução ou Retrocesso à Sociedade Brasileira? O presente artigo traz à baila um pensamento polêmico. Visto por muitos, diante do atual sentimento de impunidade que paira sobre a população do país, como a solução para a sociedade, ao mesmo tempo levanta sérios questionamentos sobre sua legalidade, pois viria de encontro aos preceitos constitucionais. Além disso, ainda existe outra latente dúvida: O Judiciário brasileiro, bem como a própria sociedade, estariam suficientemente maduros para aplicar tal teoria sem cometer mais injustiças, retrocedendo a históricas conquistas da humanidade, e ferindo os chamados Direitos Humanos e Garantias Fundamentais, positivadas na Carta Magna do Brasil, o que agravaria a atual situação da Justiça brasileira?

Nesse sentido, o objetivo geral deste artigo é demonstrar a Teoria do Direito Penal do Inimigo, a fim de compreender seus ideais, tendo assim condições de analisar seus prós e contras, de maneira a formar uma opinião acerca de sua aplicabilidade no Brasil. São ainda objetivos específicos desta pesquisa: expor as bases filosóficas da Teoria do Direito Penal do Inimigo para, assim, constatar em que circunstâncias ela surgiu; apresentar as características de tal teoria, de forma a avaliar as consequências de sua utilização no Brasil; posicionar-se a favor ou contra a Teoria do Direito Penal do Inimigo. O tema em comento é relativamente recente, causando grande polêmica na população e na doutrina, com opiniões controversas, além de ser uma relevante discussão de interesse geral e bastante apropriada ao atual momento em que vive a Justiça brasileira, perante o aumento da criminalidade e a sensação de impunidade vivida pela população.

2 TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Onde existe uma sociedade organizada, aí existe o Direito. Sua função é regular a vida das pessoas, de maneira que as mesmas possam conviver harmonicamente, respeitando uns aos outros. Já o Direito Penal, na concepção de Barreto, citado por Moraes (2011, p. 23), “é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade de um povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza. Nele se espelha a sua alma”. Por meio dessas palavras, entende-se que o Direito Penal é o ramo do Direito incumbido de garantir o mínimo de paz em uma sociedade, evitando que o homem volte a seu estado natural, um cenário de guerra de todos contra todos. “O Direito é, pois, antes de tudo, o raio-x da ética social. O Direito Penal, como medida extrema de manutenção da ordem e de pacificação social é, por excelência, o reflexo da moral de um povo” (MORAES, 2011, p. 23).

“A sociedade insegura busca segurança”, afirma Diniz (2012, p. 25). Para o referido doutrinador, o Direito Penal apresenta-se como ineficaz à estabilização normativa da sociedade moderna, levando a fazer uma distinção entre inimigo e pessoa. Diniz (2012) apresenta ainda, que o conceito de pena dado por Jakobs sempre esteve atrelado à ordem, ou seja, para que o Estado consiga manter a ordem na sociedade, é necessário que se faça uso da pena como instrumento punitivo e garantidor daquela. Aqui, a pena é vista somente em seu caráter repressivo, e não pelo caráter restaurador.

Segundo Jakobs (2015, p. 24), “denomina-se Direito o vínculo entre pessoas que são titulares de direitos e deveres, ao passo que a relação com um inimigo não se determina pelo Direito, mas pela coação.” Este pensamento demonstra a clara distinção feita por Günter Jakobs, para dois tipos de criminosos: os cidadãos e os inimigos. Assim, em maio de 1985, em Frankfurt, Günter Jakobs anunciou o problema do inimigo como fonte de perigo. Porém, foi em outubro de 1999, em um Congresso realizado em Berlim, sobre “Os desafios da ciência do Direito Penal frente ao futuro”, que o referido professor expôs com clareza sua teoria sobre a necessidade de reconhecer, face à constante mutação da sociedade, que avança para uma criminalidade crescente, tanto em quantidade de delitos, quanto na gravidade dos atos, a adoção de um Direito Penal inovador, voltado para o Inimigo. Este é identificado como sujeito que, de forma grave e reiterada, agindo muitas vezes por princípios, se comporta de maneira contrária à norma jurídica vigente, não demonstrando nenhuma possibilidade de um dia se adequar às normas da sociedade. Torna-se, dessa forma, uma ameaça à mesma, devendo ser combatido e detido pelo Estado, que se relaciona com o inimigo pela coação, e não pelo Direito.

É o que a doutrina chama de terceira velocidade do Direito Penal. A primeira velocidade é a tradicional, cuja finalidade precípua é a aplicação de uma pena privativa de liberdade, mas com as garantias individuais sendo respeitadas. Na segunda velocidade, tem-se um Direito Penal que já não se dedica primordialmente à aplicação exclusiva de penas privativas de liberdade, buscando penas alternativas, desencarceradoras e mais brandas, rumo à ressocialização. É o que acontece no Brasil, notadamente com a criação dos Juizados Especiais Criminais, além da aplicação de penas alternativas como a restritiva de direitos e a multa, bem como outras medidas como a suspensão condicional da pena e o livramento condicional da pena. (GRECO, 2016)

Segundo o autor ora mencionado, o Direito Penal do Inimigo seria classificado como uma terceira velocidade do Direito Penal, assumindo assim, o papel de uma velocidade híbrida, ou seja, uma confluência das duas primeiras, tendo como finalidade a aplicação de penas privativas de liberdade, com uma minimização das garantias necessárias a esse fim (GRECO, 2016). Pune com mais severidade e as garantias individuais da pessoa são flexibilizadas, ou mesmo suprimidas. A teoria apresentada por Jakobs, sugerindo um Direito Penal voltado ao combate do inimigo, é por ele defendida não mais como uma regressão evolutiva das estruturas normativas penais, mas sim como uma evolução progressiva rumo à pacificação social. O combate ao inimigo é colocado como essencial para garantir os direitos humanos ao cidadão de bem. (DINIZ, 2012)

Sendo adotado este pensamento, não seria justo que um criminoso que mata um cidadão honesto e pai de família durante um assalto, sem a mínima reação da vítima, desrespeitando assim seu direito fundamental à vida, tenha seus direitos humanos garantidos durante o processo penal e no cárcere, com grandes chances de voltar a cometer tal crime quando posto em liberdade pelo cumprimento da pena.

Consoante os ensinamentos de Habibi (2016), Direito Penal do cidadão é voltado ao indivíduo que praticou um crime que, por mais grave que tenha sido, não colocou em perigo o Estado, apresentando-se como um deslize pontual. Trata-se de um crime normal, cometido por uma pessoa que negou a vigência da norma jurídica, porém é recuperável ao convívio social, podendo não mais voltar a delinquir no futuro. Já o Direito Penal do Inimigo, dirige-se àquelas pessoas que não oferecem garantias cognitivas suficientes para um comportamento fiel ao Direito, voltando assim a delinquir no futuro. Dessa forma, Jakobs vê na criminalidade econômica, no terrorismo, na criminalidade organizada e nos delitos sexuais, formas de iminente perigo ao Estado, sem nenhuma garantia cognitiva por parte do delinquente, devendo, portanto, ser neutralizado, mesmo que isso importe em violação de seus direitos humanos e garantias fundamentais, em prol destes mesmos direitos dos cidadãos considerados pessoas. Para chegar a tais conclusões, Jakobs teve sua base filosófica apoiada em alguns importantes pensadores, sintetizada por Gomes, da seguinte maneira:

“a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o estado ‘comunitário-legal’, deve ser tratado como inimigo (Kant)” (GOMES, apud MORAES, 2015, P.186).

Antes mesmo do surgimento de tais filósofos, ainda na Antiguidade, Protágoras sustentava que os incorrigíveis deveriam ser excluídos da sociedade. Na idade Moderna, surge na Alemanha do pós-guerra, um Direito Penal voltado a proteger a dignidade humana, através de normais penais repressivas, em uma sociedade traumatizada pelo regime de horror imposto por Adolf Hitler. Assim, Jakobs define a separação entre pessoa e inimigo, em que a supressão de certos direitos fundamentais deste, garantiria os mesmos direitos daquele (DINIZ, 2012). Jakobs (2015), em sua teoria, diz não ser contra os direitos humanos com vigência universal. Considera o Direito Penal do Inimigo, não como regra, mas como exceção, ou última ratio, sendo uma resposta do Estado frente ao inimigo, como uma autodefesa. Segundo ele, os indivíduos que vulneram os direitos humanos de outrem, devem ser duramente castigados, de maneira a garantir que não sejam reincidentes. “Isso não é uma pena contra pessoas culpáveis, mas contra inimigos perigosos, e por isso deveria chamar-se a coisa por seu nome: Direito Penal do Inimigo”. (JAKOBS, 2015, p. 46). Assim, em tom de provocação, batizou sua teoria.

Apesar de defender um tratamento diferenciado, sendo mais repressor ao indivíduo considerado inimigo do Estado, Jakobs admite que esta condição não é definitiva. Caso o inimigo demonstre no cotidiano que, com seu comportamento social, não oferece mais risco à sociedade, pode voltar a ser nela inserido, sendo o Estado o maior interessado em que isso aconteça, deixando as portas abertas a um possível retorno ao convívio social (ORTS, 2014). Porém, na prática, o que se observa é que, quanto mais é dispensado ao indivíduo um tratamento desumano, mais difícil torna-se sua reinserção ao meio social, aumentando sua revolta e, consequentemente, suas chances de reincidir na prática de crimes.

Em suas obras, Günter Jakobs dedica especial atenção aos terroristas. Para ele, pouco importa definições doutrinárias sobre a necessidade de se combater o terrorismo e não os terroristas, pois a pena será imposta a estes. A guerra contra eles é o meio de se combater o terrorismo. Dessa forma, coloca o terrorista em um patamar de incapacidade cognitiva de adequação às normas jurídicas, ou seja, o classifica como incapaz de conviver sob a égide das regras mínimas de convívio social. Jakobs(2015) exemplifica que, ninguém confia o serviço de tesoureiro a uma pessoa corrupta. Assim, de forma análoga, entende-se ser impossível confiar que uma pessoa, capaz de cometer atos cruéis e desumanos, possa viver pacificamente com os demais membros da sociedade.

Ainda segundo a teoria em tela, todo indivíduo que demonstra fidelidade ao ordenamento jurídico, deve ser tratado como pessoa. Já aqueles que o renegarem, não demonstrando capacidade cognitiva para assimilá-lo, perdem a condição de pessoa, devendo ser tratado como inimigo. O Direito Penal dirigido contra terroristas, visa garantir a segurança dos demais indivíduos, muito mais do que garantir apenas a vigência da norma, objetivo do Direito Penal do cidadão comum. Assim, o Estado neutralizar terroristas seria como uma legítima defesa da sociedade, inclusive a agressões futuras, justificando o emprego de meios que ignorem os direitos humanos de tais delinquentes, não sendo com isso um ato ilícito do Estado. Pode-se relembrar aqui, dizeres de populares, inflamados após o terror dos ataques do “11de setembro” que diziam que “terrorista bom é terrorista morto”, que poderia até servir de slogan para a teoria do Direito Penal do Inimigo.

A teoria de Günter Jakobs defende a legitimidade do Direito Penal do Inimigo, pois, seria sua função garantir a ordem e a paz aos cidadãos de bem, dispensando um tratamento de exceção aos terroristas, vistos como inimigos do Estado, bem como uma ameaça à segurança de todos. Portanto, a eliminação dos terroristas seria uma garantia à segurança cognitiva dos povos frente ao ordenamento jurídico, trazendo assim, o equilíbrio e a harmonia social. Para se atingir tal objetivo, o Direito Penal do cidadão é incapaz de ser eficaz diante do arsenal bélico, bem como do destemor dos criminosos, sendo necessário um Direito Penal de exceção, voltado ao autor do crime. Além do mais, a contenção do indivíduo considerado perigoso se daria na estrita medida da necessidade, ou seja, a força utilizada pelo Estado seria somente na medida suficiente para afastar o perigo. Segundo Zaffaroni (2011), por esse caminho racionaliza-se a legitimação da tortura em toda justificativa inquisitorial de emergência, dando ainda o exemplo do policial que torce o braço do criminoso até que esse solte a arma, mesmo que isso resulte em fratura.

Jakobs (2015) questiona se é possível vencer uma guerra contra o terror com os meios de um Direito Penal próprio de um Estado de Direito, tratando seus inimigos como pessoas, ao invés de fontes de perigo. Aduz que, no Estado de Direito ótimo, tal distinção o protegeria contra os ataques do inimigo. Em palestra apresentada no Congresso dos penalistas alemães realizado em Frankfurt, em maio de 1985, Jakobs citou como exemplo do Direito Penal do Inimigo, já vigente no ordenamento penal alemão por meio da lei de Segurança Aérea, de 11 de janeiro de 2005, que, no § 14, considera lícito o abate de aeronave que pretenda ser usada para atentar contra vidas humanas. Este posicionamento é combatido por muitos doutrinadores, como Habibi (2016), que considera inconsequente tal pensamento, pelo absoluto desprezo pelas vidas humanas presentes no interior da aeronave. Na tentativa de compreender Jakobs, Habibi (2016) reporta-se ao atentado ocorrido nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, em que duas aeronaves lotadas de passageiros inocentes e pilotadas por terroristas disfarçados, chocaram-se contra as famosas Torres Gêmeas, resultando em inúmeras mortes. Não desprezando as vidas perdidas no interior das aeronaves, mas sendo práticos: se ambas tivessem sido abatidas em pleno ar, centenas de vidas teriam sido salvas, em uma tragédia em que, os referidos passageiros, de um jeito ou de outro, já estavam sentenciados à morte pelos criminosos. Esta observação serve apenas para instigar uma reflexão.

Conforme aduz Zaffaroni (2011), Jakobs acredita que o tratamento diferenciado ao inimigo, encontra espaço no Estado Democrático de Direito, pensamento este que é duramente combatido pela doutrina, que acredita ser tal pensamento compatível somente com o Estado absoluto, conforme será visto adiante. O doutrinador alemão defende que, combatendo o inimigo como se estivesse em uma guerra, o Estado garante aos cidadãos de bem, um legítimo Estado Democrático de Direito. Neste sentido, Jakobs argumenta que, embora o tratamento com o inimigo seja a guerra, trata-se de uma guerra rigorosamente delimitada, em que só se priva o inimigo do estritamente necessário para neutralizar seu perigo, mas se deixa aberta a porta para seu retorno, mantendo todos os seus demais direitos. Tal argumento, novamente encontra duras críticas na doutrina.

Diante do que foi aqui aludido, podem ser identificadas algumas características da Teoria do Direito Penal do Inimigo. Primeiramente, a antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios, o que atualmente não é considerado crime na legislação brasileira, somente sendo punível se no iter criminis (caminho do crime) houver a iniciação dos atos executórios. A criação de tipos de mera conduta e perigo abstrato são também características da teoria de Günter Jakobs, devendo o indivíduo ser neutralizado se for considerado uma ameaça à sociedade, mesmo que ainda não tenha delinquido. A falta de redução da pena proporcional ao referido adiantamento (por exemplo, a pena para o mandante de uma organização terrorista seria igual àquela do autor de uma tentativa de homicídio, somente incidindo a diminuição referente à tentativa), posiciona o Direito Penal do Inimigo na contramão das medidas despenalizadoras, contribuindo para o aumento da população carcerária.

No mesmo sentido, outra característica seria a desproporcionalidade das penas, sendo as mesmas demasiadamente altas. Legislações, como nos explícitos casos europeus, que se autodenominam de ‘leis de conduta ou de combate’. A restrição de garantias penais e processuais, sendo o suposto inimigo considerado não um sujeito de direito, mas um objeto de coação, é uma das características mais marcantes da teoria em voga. O inimigo não pode ser punido com pena, mas sim, com medida de segurança. No mesmo esteio, não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade. O cidadão, mesmo depois de delinquir, continua com o status de pessoa, já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade). Outra característica bastante latente, é que o direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, já o direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos. As medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), mas sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro), passando o Estado a punir o indivíduo por uma conduta que ele ainda não cometeu, ou talvez nem chegasse a cometer, podendo assim o Direito Penal punir baseado na cogitação e/ou preparação do indivíduo, extinguindo assim o instituto da desistência voluntária e do arrependimento eficaz. Por fim, determinadas regulações penitenciárias ou de execução penal, como o regime disciplinar diferenciado, recentemente adotado no Brasil, são outro exemplo de atuação do Direito Penal do Inimigo.

3 CRÍTICAS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Para Meliá (2015), o Direito Penal do Inimigo apresenta contradições em seus termos. Opinião compartilhada por Conde (2012), que afirma ser essa teoria uma construção ambígua ao tentar ser aplicável tanto para um sistema democrático, como para um sistema totalitário. Zaffaroni (2011) é outro doutrinador que afirma ser o Direito Penal do Inimigo próprio exclusivamente de um Estado absoluto. A seguir, serão expostas algumas dessas contradições, além de outras críticas tecidas por vários doutrinadores, em que procuram demonstrar que, a adoção da referida teoria seria um retrocesso para a humanidade, além de não resolver o problema da segurança da sociedade, conforme tal teoria se propõe a fazer.

Retornando ao pensamento de Conde (2012, p. 22), pode-se chegar ao seguinte questionamento: “Quem define o inimigo e como isso é definido? Todos os delinquentes são inimigos? Se apenas um grupo de delinquentes merece tal qualificação, temos que identificá-los com maior precisão.” O referido autor considera que Jakobs não foi preciso em relação a essas questões. Além disso, considera que, o fato de o Estado, antecipadamente, os exclua e os qualifiquem como “não pessoas”, os legitime em seus ataques contra o Estado. Abre-se aqui caminho para a arbitrariedade, em que pessoas podem ser declaradas como inimigas do Estado por mera vontade de quem as acusam, ocasionando assim grandes injustiças.

Evidentemente, o Direito Penal do Inimigo representa uma ameaça aos princípios e garantias do Estado Democrático de Direito, valorizando somente a segurança cognitiva, em total detrimento da segurança normativa. Mesmo que a utilização de penas draconianas consiga, de certo modo, inibir o avanço da criminalidade, ao mesmo tempo deixa escancarada uma porta ao Direito Penal autoritário, incompatível com a democracia, podendo incorrer em graves falhas, além de retroceder a regimes utilizados por ditaduras. Conde ainda faz uma inquietante pergunta:

“O que aconteceria se, depois de se converter esse Direito penal do inimigo em realidade habitual e corrente em nossas democracias, continuassem sendo cometidas ou inclusive tivessem se incrementado as ações terroristas e as respostas também terroristas do Estado às mesmas? Reintroduzir-se-ia a tortura como meio de investigação? Abrir-se-iam campos de concentração para os inimigos? Admitir-se-ia a detenção policial sem intervenção judicial? Generalizar-se-ia a aplicação da pena de morte e se encarregariam dela tribunais militares de exceção?” (CONDE, 2012, p. 75)

Na visão de Zaffaroni (2011), o tratamento da pessoa como coisa perigosa que ameaça a segurança ou a certeza acerca do futuro não se limita a despersonalizar apenas o indivíduo, mas toda a sociedade. Portanto, admitir um tratamento penal diferente para supostos inimigos não identificáveis, significa que o Estado passaria a exercer um controle social mais autoritário sobre toda a população, impondo a ela uma série de limitações à sua liberdade. Ao serem autorizadas invasões de domicílio, detenções de suspeitos sem forte indício, investigações em meios de comunicação sem critério jurídico bem definido, provavelmente tais prerrogativas serão utilizadas por “suspeita” de algum crime teoricamente grave, decretando assim uma série de violações a direitos materiais e processuais. As pessoas que clamam por um Direito Penal mais rígido, certamente mudariam de opinião se aquele fosse aplicado a si próprio, ou a alguma pessoa de sua estima.

Gomes (2016) sublima que o Direito Penal do Inimigo é um exemplo de Direito Penal de Autor, que pune o sujeito pelo que ele “é”, que faz oposição ao Direito Penal do Fato, que pune o agente pelo que ele “fez”, revivendo o triste e trágico período do nazismo de Hitler. O referido doutrinador ainda ensina que pelo Direito Penal do Inimigo, o que é reprovado é a periculosidade do agente, e não sua culpabilidade, equiparando pena e medida de segurança, ou seja, coloca em um mesmo patamar um criminoso e um deficiente mental totalmente inimputável na legislação penal. Através dessas colocações, dentre outras, Gomes (2016) classifica o Direito Penal do Inimigo como inconstitucional. Corre-se aqui o risco de o Direito Penal tentar invadir a mente do indivíduo, punindo-o por uma vontade que talvez nunca fosse externada, por considerar assim uma ameaça à coletividade.

Outro renomado doutrinador pátrio que se opõe vigorosamente à teoria de Günter Jakobs é Greco (2016), em especial quando aduz que por meio dessa teoria, o Estado Social é deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal, que realiza grandes investimentos no setor repressivo, deixando outros setores como saúde, educação, lazer e habitação em segundo plano. O referido doutrinador acredita que o problema da criminalidade deve ser tratado pela raiz, pelo Estado, que proporcionaria maiores condições sociais e oportunidades à população. Para Greco (2016), violência gera mais violência. Acredita também que penas mais longas e severas, não seria eficaz na ressocialização de ninguém, causando mais revolta e empurrando o indivíduo sem perspectivas de reintegração à sociedade de volta ao mundo do crime.

Através de profissionais não habilitados como jornalistas e apresentadores de programas de entretenimento, que criticam ferozmente as leis penais, a população acaba apoiando o enrijecimento das penas e o surgimento de um Estado cada vez mais repressor. Greco (2016) ainda sustenta que tal raciocínio, por mais que traga conforto à sociedade, é totalmente ilusório, uma vez que a própria sociedade não toleraria a punição de todos os seus comportamentos antissociais. Preleciona com maestria que, quando a norma penal mais rígida é voltada contra determinado indivíduo, sua família e amigos, a sociedade tende a considerar injusta e pesada.

Greco (2016) é convicto que não se deve desistir do homem, classificando os indivíduos como de caráter defeituoso e desqualificando os mesmos da condição de pessoa. Profundo conhecedor da realidade brasileira, o doutrinador ainda prevê a hipótese da lista de inimigos nunca ter fim, sendo usada inclusive para afastar rivais de políticos sob o argumento de falta de patriotismo par atacar posições governamentais. Este é apenas um exemplo dentre vários outros de distorções e injustiças que poderiam ser cometidas com a adoção no Brasil do Direito Penal do Inimigo, em que, infelizmente, se convive com a discriminação a vários grupos como, por exemplo, o negro, o pobre e o homossexual.

Dessa forma, reforça-se aqui a crítica que se fazà adoção do Direito Penal do Inimigo no Brasil, que é a enorme possibilidade de serem cometidas injustiças penais, uma vez que o foco de tal teoria é eliminar o risco de perigo à sociedade, pela pessoa suspeita. Despreza-se assim a culpabilidade do indivíduo, ou seja, a punição na medida da conduta realizada por ele. Além disso, é extremamente preocupante a definição utilizada pela Teoria do Direito Penal do Inimigo para classificar os criminosos entre recuperáveis e inimigos do Estado, em que os critérios para tal não são bem definidos, havendo uma imensa margem para a arbitrariedade. Assim, será exposta a seguir uma análise da Teoria do Direito Penal do Inimigo aplicada à legislação brasileira.

4 DIREITO PENAL DO INIMIGO E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Como já visto anteriormente, na visão de Jakobs (2015), o inimigo é o indivíduo que cognitivamente não aceita submeter-se às regras básicas do convívio social, devendo-se pensar, para ele, um Direito Penal de exceção, baseado na flexibilização de direitos e garantias penais e processuais. Ao inimigo, a sociedade imporá um tratamento totalmente diferente ao definido no Direito Penal clássico, desprezando completamente sua condição de ser humano, se assim for necessário para garantir a segurança e a paz. Apesar de sua teoria ir de encontro a vários princípios constitucionais como o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da razoabilidade, para Jakobs (2015), esse tratamento diferenciado dado aos inimigos do Estado poderia ser, em tese, legitimado constitucionalmente.

O Brasil, como Estado Democrático de Direito, sob a égide de uma Constituição que reafirma e protege os direitos humanos e garantias fundamentais, ratificando vários tratados internacionais que protegem os mesmos direitos, não demonstra estrutura, tanto política quanto jurídica, para incorporar à sua Carta Magna, bem como à sua legislação infraconstitucional, os preceitos do Direito Penal do Inimigo, que, conforme percebido nas críticas tecidas pela doutrina a tal teoria, não é compatível com o Estado Democrático de Direito, mas com um Estado Absoluto. Tal fato representaria um enorme retrocesso à sociedade brasileira, que guarda uma história de lutas e conquistas pelo reconhecimento de vários direitos que, atualmente, a humanidade tem o privilégio de terem reconhecidos como inerentes à pessoa humana, tutelados com cláusulas pétreas na Constituição. (HABIBI, 2016)

Além disso, o Brasil carece de uma estrutura cultural adequada, uma vez que sua população não está acostumada à severidade de algumas penas, como a prisão perpétua e a pena de morte. No que tange à fase processual, também parece preocupante a possibilidade de ter o Direito Penal do Inimigo na legislação, pois isso seria uma afronta ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, bem como ao princípio constitucional da presunção de inocência. Correria-se o imenso risco de prejudicar a defesa de um inocente, condenando-o a duras penas, o que provavelmente seria irreversível.

Outro grande problema que se observa no Brasil é a corrupção, e aí surge grande preocupação. Por não haver um critério bem definido pela Teoria do Direito Penal do Inimigo para determinar quais cidadãos seriam considerados realmente uma ameaça ao Estado e à sociedade, os criminosos do colarinho branco e com elevado poder econômico, teriam um “prato cheio” para incriminar pessoas inocentes e mais fragilizadas economicamente. Seria assim agravada uma das piores situações que um ordenamento jurídico pode ter: a injustiça e a impunidade, que já são bem presentes no cotidiano do país.

O Brasil tem o privilégio, pelo menos até o momento, de não ter sido alvo de terroristas, conforme o mundo assistiu com tristeza, aos atos criminosos praticados em Nova York no “11 de setembro”, bem como vários outros acontecidos em países da Europa. Em 16 de março de 2016, foi sancionada a lei nº 13.260, chamada lei antiterrorismo, o que demonstra que as autoridades do país estão preocupadas, uma vez que nenhum Estado está livre de tal ameaça.

Segundo o pensamento de Greco (2016), a ineficiência do Estado em executar políticas públicas básicas, bem como em gerir adequadamente o sistema penitenciário, proporciona um campo fértil para o crescimento da criminalidade, potencializado pelos meios de comunicação como a televisão e a internet, causa um sentimento de insegurança na população brasileira, a qual se mostra, cada vez mais, seduzida por discursos de políticos que defendem a violação de direitos humanos dos criminosos pelo Estado, em prol da proteção dos direitos humanos da população comum. Dessa forma, a omissão do Poder Público faz recair todo esse ônus sobre o Direito Penal. Segundo Bonfim e Capez, citados por Moraes (2015), quando o ordenamento se esforça para reprimir uma conduta vista socialmente como branda, ela corre o risco de ser desacreditada.

Um dado importante exposto por Moraes (2015) é que, somente um quarto dos crimes perpetrados no Brasil, são efetivamente cientificados aos Poderes Públicos e órgãos de repressão policial, e conforme preleciona Moraes Jr, citado por Moraes (2015, p. 71), eles representam, pois, “o subproduto da impunidade que, aos olhos de gente ordeira, assume também a forma de punição insuficiente”. Assim, cresce o anseio da população por penas mais severas. Dessa forma, o que Moraes (2015) sustenta, é que a complexidade e dinâmica da atualidade, bem como a forma inadequada que se vem legislando e a constante mutação que faz surgir novas demandas da sociedade pós-industrial, têm favorecido que um conjunto de leis com sinais de Direito Penal do Inimigo surja, de maneira contumaz, no direito pátrio e alienígena.

É nítida a presença de traços do Direito Penal do Inimigo na legislação brasileira, como, por exemplo, a Lei nº 8.072/1990, chamada de Lei de Crimes Hediondos. Esta lei cumpre perfeitamente o papel de dar à população a falsa ideia de maior segurança, através de leis penais mais repressoras. No ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o §1º do art. 2º da referida lei. Tal dispositivo legal violava o princípio constitucional da individualização da pena, pois obrigava o juiz a sempre condenar o réu ao regime integralmente fechado, de forma independente das condições pessoais do mesmo e das particularidades do caso concreto. Esta norma manteve-se vigente no Brasil por mais de quinze anos. Atualmente, a legislação pátria exige o regime inicial fechado para cumprimento de pena para crimes hediondos, fato que já vem sendo contestado pelo Supremo Tribunal Federal, que passa a entender que mesmo assim, está sendo violado o direito do réu à individualização da pena.

É possível mencionar também, a alteração feita pela Lei nº 10.792/03 na Lei de Execuções Penais, com destaque para o artigo 52 da referida lei, instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado, que determina ao preso um período mais longo de isolamento, tanto em relação aos demais presos quanto aos seus familiares. Trata-se de pena notoriamente cruel, vedada pelo art. 5º LXVII da Constituição Federal, ferindo ainda a dignidade da pessoa humana, pois tal regime isola o condenado em um cubículo de dimensões bem reduzidas, podendo ficar submetido a este regime por até 360 dias, período em que só pode sair do isolamento por duas horas diárias para banho de sol, além da visita semanal de apenas duas pessoas.

Gomes (2016) aumenta a lista de incidências do Direito Penal do Inimigo ao mencionar o uso de algemas no cotidiano brasileiro, em discordância com a lei processual penal brasileira, como demonstração da referida teoria, ferindo vários princípios e direitos constitucionais do acusado. Apesar da legislação brasileira disciplinar o uso de algemas somente para casos extremos, não é o que acontece na realidade do país. Para Gomes (2016), o abuso no uso de algemas constitui medida vexatória que fere o princípio constitucional da presunção de inocência, contemplado no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal. Aqui, mais uma vez, uma manifestação do Direito Penal do Inimigo traz sensação de segurança à população, que muitas vezes aprova o uso de algemas indiscriminado em casos de grande exposição midiática, em que os acusados já estão previamente condenados pela opinião pública. Gomes (2016) conclui seu raciocínio evidenciando que o uso de algemas deve ser utilizado em casos extremos de resistência à prisão e por medida de segurança. Para ele, mesmo o fato de o acusado ser realmente culpado, não justifica o uso abusivo das algemas sem necessidade, o que proporciona um lamentável espetáculo de humilhação.

O Direito Penal do Inimigo também é percebido através do art. 1º, §2º da Lei nº 9.614/98, chamada de Lei do Abate, em que prevê a destruição de aeronaves fundada simplesmente em suspeitas de estarem transportando drogas ou armas, em espaço aéreo brasileiro, se as mesmas descumprirem ordem de pouso da Força Aérea Brasileira. Trata-se de caso de execução sumária de passageiros, sem avaliar os motivos de tal desobediência, que pode ser, por exemplo, um defeito nos equipamentos de comunicação. Podem ser observados também alguns casos, em que a influência midiática incitou grande comoção nacional, como no caso Eloá e do casal Nardoni. No primeiro, o réu Lindemberg, transtornado pelo fim de seu namoro com a jovem Eloá, cometeu vários crimes, sendo condenado à pena máxima em quase todos dos quais foi acusado, totalizando 98 anos de prisão. Neste caso, não foram levados em consideração várias circunstâncias atenuantes, bem como a absorção de crimes meio por crime fim. No segundo, os réus foram pré-julgados e moralmente condenados pelo assassinato de uma criança, Isabella Nardoni, tendo o direito de responder o processo em liberdade refutado pela Justiça, numa nítida afronta aos princípios do devido processo legal e ao contraditório, que são garantias fundamentais do réu garantidos pela Constituição Federal brasileira.

Mais recentemente, às vésperas das Olimpíadas Rio 2016, a Polícia Federal brasileira prendeu suspeitos de envolvimento com a rede terrorista Estado Islâmico, em supostos atos preparatórios de atentados, a serem executados durante os jogos. Trata-se de uma ação nítida do Direito Penal do Inimigo, tipificada no art. 5º da Lei nº 13.260/2016, sendo uma de suas características marcantes, a punição e neutralização de criminosos em atos preparatórios, mesmo que as ações dos suspeitos não configurem outros crimes. Antes do advento da referida lei, no iter criminis praticado no Brasil, somente se punia os atos constantes da fase de execução. Trata-se de um belo exemplo da presença do Direito Penal do Inimigo no Brasil, contando com o apoio da maioria da população, temerosa que o país fosse palco de horror pelas mãos de terroristas.

Orts (2014) nos traz à mente uma pergunta no mínimo preocupante: o menor de 18 anos, sendo inimputável na legislação, seria ou não considerado inimigo do Estado? É fato notório que, no Brasil, crianças e adolescentes estão sendo aliciados cada vez mais cedo principalmente pelos traficantes de drogas. A situação de miséria, fome e falta de oportunidades e educação adequada, têm empurrado os jovens ao mundo do crime. E o mais alarmante, é que tais jovens muitas vezes constituem criminosos de alta periculosidade, conforme se observa frequentemente em noticiários, que mostram atrocidades cometidas por eles. Outro bom exemplo são as rebeliões ocorridas na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que é uma instituição cuja função é executar as medidas socioeducativas aplicadas pelo Poder Judiciário aos adolescentes autores de atos infracionais com idade de 12 a 21 anos incompletos, em que o nível de violência é bastante alto.

Mais uma vez, menciona-se aqui a sensação de insegurança da população, que cada vez mais ganha adeptos a aprovação de lei que diminui ainda mais a maioridade penal, conforme alerta Greco (2016). Ao serem noticiadas na mídia brasileira as atrocidades cometidas por menores infratores, percebe-se a reação de muitos populares no sentido de que os mesmos sofram o rigor das penas cominadas aos imputáveis, ou mesmo castigos dos mais severos. Assim, paira no ar a angústia de imaginar crianças e adolescentes sendo consideradas inimigas do Estado e submetidas tão precocemente à rigidez das penas do Direito Penal do Inimigo. Será que a solução para o futuro desses menores está realmente no direito penal? Por tudo que aqui já foi exposto, fica óbvio que não.

Pelas ponderações de vários doutrinadores nacionais e estrangeiros, como Zaffaroni (2007), Conde (2012) e Greco (2016), pode-se concluir que a aplicação do Direito Penal do Inimigo na legislação brasileira é incontestavelmente inconstitucional, pois fere princípios constitucionais primordiais como a dignidade da pessoa humana, a razoabilidade e a proporcionalidade, sentenciando assim a sociedade a um retrocesso, verificado no passado às custas do sofrimento de muitos inocentes. Assim, ao serem analisadas as características da Teoria do Direito Penal do Inimigo, confrontando com a Lei Máxima, parece óbvio o entendimento que, tal pensamento deve ser refutado não só no Brasil, mas em todo o mundo. A corrente doutrinária contra a referida teoria mostra-se bem mais numerosa e consistente do que a corrente a favor. Porém, para que se possa compreender melhor em que reside a polêmica do assunto, serão aqui supostas algumas situações hipotéticas, já noticiadas na televisão mundial, por meio de casos semelhantes.

Primeiro caso: um jovem brasileiro de 20 anos, filho de pais muçulmanos, simpatizante do radicalismo propagado pelo grupo terrorista Estado Islâmico, resolve adquirir armas de grosso calibre, atentando contra a vida de seus colegas de escola, por questões meramente de intolerância religiosa. Até então, o jovem não desperta nenhuma suspeita por seu comportamento, sendo percebido apenas como uma pessoa tímida. Assim, conseguindo as armas no mercado negro, coloca seu plano em prática, executando dezenas de jovens inocentes de sua escola. Preso pela polícia, cumpre sua pena privativa de liberdade, mantendo sua fé religiosa e dando sinais de não arrependimento, porém mantendo bom comportamento no cárcere. Pelo atual sistema penal brasileiro, sairia da prisão ainda jovem. Qualquer pessoa sentiria um calafrio diante de tal fato, ao ver esse indivíduo posto em liberdade. Além da revolta pelo que ele fez, o medo de que ele voltar a praticar outro ato de crueldade é incontrolável.

Segundo caso: uma menina de 16 anos é dopada e violentamente estuprada coletivamente por vários homens, tendo o ato sido filmado e postado em redes sociais, ferindo ainda mais a honra dessa garota. Que pai e mãe de filha exposta a tamanha crueldade se sentiria bem ao saber que tais criminosos já estariam em liberdade?

Tais casos estão sendo aqui expostos para ilustrar que a grande polêmica da Teoria do Direito Penal do Inimigo reside muito mais na própria população do que na doutrina que discute o assunto. É normal que as pessoas se sintam revoltadas e inseguras. O ser humano, principalmente aquele que sofreu atrocidades, ou alguém por ele querido, na maioria dos casos tem a vontade de ver os agressores punidos com severidade, saciando seu desejo de vingança. Além disso, se os indivíduos considerados inimigos do Estado não oferecem garantias cognitivas de recuperação, o sentimento de insegurança e desconfiança aparecerá. Quanto mais cresce na população a vontade de ver as ideias do Direito Penal do Inimigo implantadas em no sistema jurídico, maiores são as chances de isso realmente acontecer um dia, pois as leis existem em um país para atender aos anseios de seu povo.

Ao acrescentar a esses questionamentos possíveis convicções religiosas, surgirá na mente das pessoas uma verdadeira tempestade de pensamentos, muitas vezes pairando a dúvida sobre qual posicionamento tomar, tornando assim o tema ainda mais instigante. Diante de tantas indagações e mantendo a linha de raciocínio como operadores do Direito, conclui-se aqui pela reprovação à Teoria do Direito Penal do Inimigo, sob a luz da Constituição Federal e tendo em vista que tal teoria não garantiria a tão sonhada pacificação social.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através deste artigo, foram apresentadas as ideias da Teoria do doutrinador e professor alemão Günter Jakobs, intitulada por ele mesmo como Direito Penal do Inimigo. A exposição de tal teoria, provocou a reação da doutrina jurídica ao redor do mundo, que não economizou críticas a essa. Jakobs acredita que o Direito Penal deve tratar de maneira diferenciada duas classes de criminosos, sendo uma de cidadãos que normalmente cumprem o ordenamento vigente, respeitam o convívio harmônico em sociedade, porém cometeram, em algum momento da vida, um deslize pontual, não oferecendo perigo à sociedade. Afinal, ninguém é perfeito, e como seres humanos, estão sujeitos ao erro.

A segunda categoria seria integrada por criminosos por convicção, que não se intimidam com as leis penais impostas à sociedade, não demonstrando assim, condições cognitivas de assimilarem a necessidade de seguirem as normas jurídicas impostas pelo Direito como forma harmoniosa de convívio social. São, portanto, considerados irrecuperáveis, representando um perigo às pessoas de bem, não sendo merecedores da condição de pessoa humana. Devem ter seus direitos e garantias fundamentais flexibilizados, ou até mesmo suprimidos, para que os direitos humanos dos considerados cidadãos de bem possam ser assegurados. Apesar de encontrar na doutrina forte resistência, a teoria de Jakobs ganha cada vez mais simpatizantes ao redor do mundo, não sendo diferente no Brasil. A exposição sensacionalista pela mídia dos crimes bárbaros que vem acontecendo de maneira exponencial, gera um sentimento de revolta, insegurança e medo nas pessoas, que passam a acreditarem que o rigor de um Direito Penal mais repressor, resolveria a questão.

Sob a égide da Constituição Federal do Brasil, a teoria do Direito Penal do Inimigo não encontra guarida, pois fere vários princípios constitucionais que foram sendo reconhecidos ao longo do tempo, resultado de muita luta e sofrimento. Apesar disso, já se pode verificar traços do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico, como na Lei de Crimes Hediondos e na Lei do Abate. Ao lado disso, cuida anotar que se tem na história casos de exposição midiática em que a comoção nacional influenciou a decisão de juízes e jurados na condenação e aplicação de pena, lembrando os preceitos da teoria de Günter Jakobs. Aparece aqui o Direito Penal como solução para o convívio harmônico das pessoas, sendo esquecidos vários problemas sociais como saúde e educação. Enquanto houver ineficácia do Estado no tratamento de tais problemas, as leis penais não serão suficientes para conter a criminalidade, podendo até ser a situação agravada caso sejam utilizadas de maneira mais rigorosa.

Em um país contaminado pela corrupção em todas as camadas da sociedade, admitir a adoção plena do Direito Penal do Inimigo é caminhar a passos largos rumo a uma sociedade caótica e em que prevalece a injustiça. O Brasil não tem maturidade suficiente para lidar com penas mais severas, em que somente os excluídos seriam assolados com o rigor de tais penas. Fatalmente, muitos poderosos sairiam impunes. O presente artigo teve como objetivo principal, através da exposição das ideias da Teoria do Direito Penal do Inimigo, sua base filosófica e análise de consagrados doutrinadores, motivar o leitor a refletir sobre as consequências da adoção de tal teoria no ordenamento jurídico brasileiro, entendendo que dessa forma, a paz social não teria nenhuma garantia. A humanidade não deve jogar no lixo, impulsionada pela revolta dos crimes aterrorizantes que assolam o planeta, como a ação dos terroristas, as conquistas do reconhecimento de vários direitos humanos e garantias fundamentais, que foram aparecendo ao longo dos anos em doses homeopáticas. Isso seria um grave retrocesso, podendo decretar um caminho sem volta.

 

Referências
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 01nov. 2016.
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____________. Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal e dá outras providências. D.O.U.de 02/1202003, p. 2.
____________. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. D.O.U. de 17/03/2016, p. 1 – edição extra.
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Informações Sobre os Autores

Marcus Bazzarella de Oliveira

Advogado. Pós-Graduando do Curso de Especialização Lato Sensu em Ciências Penais – Curso Forum / Universidade Cândido Mendes – RJ

Tauã Lima Verdan Rangel

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES


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