Expansão do ensino jurídico no Brasil: associação de interesses econômicos e ideológicos

Resumo: O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa documental e bibliográfica sobre a expansão do ensino jurídico no Brasil olhando esta atividade escolar sob a perspectiva da teoria dos Aparelhos ideológicos de Estado, a qual permite concluir que a certificação curricular do estudante de um curso de Direito tem como objetivo treinar os operadores dos órgãos civis do Aparelho repressor de Estado, os quais têm, por sua vez, a função de reproduzir as relações de produção do modo de produção capitalista.

Palavras-chave: ensino jurídico, ensino superior, direito, ensino de direito.

Abstract: This work is the result of a documental and bibliographical research on the expansion of legal education in Brazil looking at this school activity from the perspective of the theory of ideological state apparatus, which shows that the curriculum certification student of a law school aims to train operators of civilian agencies of the State repressive apparatus, which have, in turn, the function of reproducing the relations of production of the capitalist mode of production.

Keywords: legal education, higher education, law, law school.

Sumário: Introdução. 1. Expansão do ensino jurídico no Brasil. 2. Interesses econômicos na atividade escolar de ensino jurídico. 3. Interesses ideológicos embutidos no ensino jurídico. Conclusão. Referências.

Introdução
A considerável expansão da oferta de cursos de ensino jurídico no Brasil tem atraído o interesse da pesquisa científica por oferecer diversos ângulos de abordagem, sendo que neste trabalho interessa-nos desvelar os aspectos ideológicos e econômicos envolvidos nesta aparente democratização do acesso ao ensino superior.

Para atingir esse objetivo é necessário conhecer algumas características do ensino jurídico e analisá-las criticamente com apoio em uma teoria que seja adequada para esta finalidade, sendo que a Teoria dos Aparelhos ideológicos de Estado elaborada por Louis Pierre Althusser fornece os elementos necessários para este propósito.

1. Expansão do ensino jurídico no Brasil

Abordando, primeiramente, a expansão em si, da oferta de cursos de ensino jurídico, cabe afirmar que um dos efeitos decorrentes da crise econômica que se abateu sobre o Brasil nos anos de 1980 foi a estagnação da prestação de serviços públicos pelo Estado, a qual estimulou a iniciativa privada a expandir as suas atividades, principalmente na educação superior, em que chegou a deter nos anos de 2008/2009 quase 90 % da quantidade de instituições de ensino superior existentes em todo o território nacional.

Nesse toar de restrições aos investimentos pelo poder público as políticas públicas assumiram um caráter meramente assistencialista, destituídas de qualquer intenção de transformar a realidade social brasileira.

A oferta de ensino jurídico não se afastou desse comportamento e para viabilizar a sua expansão foi esta atividade escolar assumida quase que integralmente pela iniciativa privada, na linha do modelo anglo-saxônico, o qual em sua versão norte-americana enseja um maior estreitamento dos laços da universidade com as demandas de mercado:

“A partir da década de 1990 em um processo que está em curso nos dias atuais, emerge nova mudança, caracterizada pela diversificação das formas de organização das instituições de ensino superior alterando-se o modelo de universidade na direção do modelo anglo-saxônico na versão norte-americana. Em consequência dessa mudança freou-se o processo de expansão das universidades públicas, especialmente as federais, estimulando-se a expansão de instituições privadas com e sem fins lucrativos e, em menor medida, das instituições estaduais. Essa foi a política adotada nos oito anos do governo FHC, o que se evidenciou na proposta formulada pelo MEC para o Plano Nacional de Educação apresentada em 1997”. (SAVIANI, 2010, p. 13).

A tabela 1 abaixo retrata com números as quantidades de cursos, de alunos ingressantes, do total de matrícula (alunos ingressantes e alunos veteranos) e de alunos concluintes de cursos jurídicos no período de 1991 a 2012, propiciando uma visão global tanto da expansão da quantidade desses cursos no país quanto da população estudantil nela envolvida, sendo que essas variáveis têm tido um comportamento sempre crescente ao longo do tempo, o que dá uma aparência de democratização do acesso ao ensino superior:

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Constata-se da tabela acima que foram lançados no mercado de trabalho nos últimos tempos, mais de noventa mil bacharéis em Direito por ano, sendo que no ano de 2012 esse número chegou próximo de cem mil bacharéis, o que permite supor uma supersaturação do mercado de trabalho para esses profissionais.

Plotando-se em um gráfico os números referentes à quantidade de cursos de ensino jurídico em função do tempo, visualiza-se com mais nitidez a curva da expansão da quantidade de cursos jurídicos no Brasil no período acima compreendido, como mostra a figura seguinte:

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O comportamento da curva formada no gráfico acima mostra a ocorrência de um aumento acelerado da oferta de cursos jurídicos após o ano de 1997, e uma tendência ao esgotamento de sua expansão a partir do ano de 2007, uma vez que, aparentemente, o mercado de prestação de serviço educacional de ensino jurídico exauriu a sua capacidade de absorção de novos cursos para esta modalidade de ensino.

O significativo impulso verificado na expansão da oferta desses cursos após o ano de 1997 foi estimulado pela alteração normativa estatal que estabeleceu menor grau de exigências pelo MEC para a criação de centros universitários e faculdades isoladas, facilitando assim, a proliferação dessas modalidades de organização de instituição educacional, as quais têm se caracterizado pelo não engajamento na pesquisa, limitando-se à restrita atividade de ensino, como é de conhecimento público e notório:

“Em verdade, os centros universitários são um eufemismo das universidades de ensino, isto é, uma universidade de segunda classe, que não necessita desenvolver pesquisa, enquanto alternativa para viabilizar a expansão, e, por consequência, a “democratização” da universidade a baixo custo, em contraposição a um pequeno número de centros de excelência, isto é, as universidades de pesquisa que concentrariam o grosso dos investimentos públicos, acentuando o seu caráter elitista”. (SAVIANI, op. cit. p. 11).

Conforme dados levantados pelo censo da educação superior realizado pelo INEP, 88 % das matrículas em cursos jurídicos no Brasil no ano de 2012 ocorreram em instituições privadas de ensino superior, como estampado abaixo na tabela 2, sendo de se destacar que essa proporção é quase idêntica à quantidade total das instituições privadas de ensino superior existentes no país naquele mesmo ano, ou seja, 87,4%.

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O predomínio da iniciativa privada na oferta de cursos jurídicos demonstra quão atrativa lhe é essa atividade escolar:

“Não seria exagero dizer que o ensino jurídico no Brasil está praticamente entregue à lógica do lucro e da exploração econômica, levada a efeito pelos empresários da educação que passaram a enxergar nesse “filão” de mercado um negócio extremamente lucrativo”. (MACHADO, 2009, p. 59).

Um dos atrativos que a oferta de curso de ensino jurídico exerce sobre a iniciativa privada é o seu baixo custo operacional, pois além de haver grande procura por parte de estudantes ingressantes, necessita-se de pouco investimento para viabilizar a sua disponibilidade, o que o leva a ser caracterizado como um curso financeiramente superavitário.

2. Interesses econômicos na atividade escolar de ensino jurídico

A atratividade econômica da atividade de ensino jurídico para a iniciativa privada é realçada ao se levar em conta, principalmente, que essa modalidade de ensino pode se sustentar apenas com aulas teóricas, dispensando-se, assim, investimentos com laboratórios e equipamentos.

“Para as instituições de ensino, o Direito é um curso barato, para o qual não há dificuldade de obter professores […] – juízes, promotores, procuradores – que não exige grande investimento em infraestrutura e laboratórios, e cuja intensa procura e arrecadação ajudam a sustentar outros cursos deficitários.” (GRECO, 2005).

O predomínio da iniciativa privada nesta atividade escolar permite questionar se o ensino jurídico conseguirá nela desenvolver nos potenciais futuros operadores do Direito uma formação com a qual poderão contribuir para a transformação do ensino jurídico em uma atividade escolar crítica e dialética.

Ao que parece, as escolas privadas têm maior interesse apenas em reproduzir o status quo:

“[…] O acelerado processo de privatização do ensino superior do direito, este predominantemente reproduzido no âmbito das escolas particulares, funciona como verdadeiro obstáculo à concepção de um curso com preocupações humanísticas e proposta crítica, pelo simples motivo de que as mantenedoras do ensino privado, orientadas pelo princípio de mercado, com a sua lógica de eficiência, lucro e competitividade, não têm nenhum interesse em formar bacharéis com visão crítica que possam vir a criticar justamente os pressupostos e o funcionamento desse mesmo mercado”. (MACHADO, op. cit. p. 171).

Como se poderia supor, empresas de ensino têm o mesmo objetivo de qualquer outra empresa capitalista, ou seja, o lucro financeiro, não se harmonizando com esse objetivo a formação de estudantes com visão crítica sobre as relações de produção do modo de produção capitalista – principalmente quando se trata de potenciais futuros operadores do Direito – uma vez que isso não se harmoniza com os objetivos de lucro que orientam a iniciativa privada capitalista. (MACHADO, 2009, p. 41).

Quanto às universidades públicas, por sua vez, embora ainda estejam conseguindo atuar sem objetivo de lucro financeiro, não se deve criar, entretanto, muita expectativa sobre a perpetuação dessa característica, uma vez que grande parte delas já absorveu a lógica produtivista que caracteriza a universidade privada. (MACHADO, 2009, p. 171).

Em decorrência dessa diferenciação entre universidade pública e universidade privada, caberia perguntar o quê, então, na sua essência, existiria de comum entre elas (?).

Uma resposta a esse questionamento pode ser esboçada com fundamentação teórica no pensamento althusseriano, de que ambas – a universidade pública e a particular – integram o mesmo Aparelho ideológico de Estado, isto é, o Aparelho escolar e, assim, tocam na mesma orquestra, regidas pela partitura única que é a Ideologia de Estado, voltada para a reprodução das relações de produção do modo de produção capitalista.

De acordo com essa teoria a vinculação de uma instituição, uma organização ou uma prática ao poder público ou à iniciativa privada é apenas um efeito da forma produzida pelo Direito, o que não afeta o conteúdo daquela teoria. (ALTHUSSER, 2008, p. 107).

“Não é, portanto, a distinção público/privado que pode atingir nossa tese sobre os Aparelhos ideológicos de Estado. Todas as instituições quer sejam propriedades do Estado ou de tal particular, funcionam, por bem ou por mal, enquanto peças de Aparelhos ideológicos de Estado, determinados sob a ideologia de Estado, a serviço da política do Estado, o da classe dominante, na forma que lhes é própria: a de Aparelhos que funcionam de maneira predominante por meio da ideologia – e não por meio da repressão, como o Aparelho repressor de Estado. Essa ideologia é, como já o indiquei, a Ideologia do próprio Estado”. (ALTHUSSER, op. cit. p. 107).

Não se vislumbra assim, em harmonia com a teoria althusseriana, nenhum impedimento para que se desconsidere a diferença entre público e privado, exclusivamente para a formulação da tese contida neste trabalho a respeito do ensino jurídico, assim como não se reconhece nenhum fundamento teórico que imponha diferenças na análise da epistemologia do ensino jurídico como objeto de pesquisa desta tese em decorrência de ser ele ministrado em uma instituição pública ou privada de ensino superior.

Convém destacar que nem todos os bacharéis formados nos cursos jurídicos passam a exercer a advocacia ou ocupar cargos restritos ao bacharel em Direito no Aparelho de Estado, fato este que sempre caracterizou o ensino jurídico, como se constata da fala do então Deputado José Clemente Pereira quando da discussão sobre a criação dos cursos jurídicos no Brasil Império, ocorrida no ano de 1826:

“Nem todos os que se formam em Direito se empregam na advocacia ou na magistratura, muitos seguem outro destino, dedicam-se à diplomacia, às finanças, etc., e passam depois a ocupar os lugares de Ministros de Estado, Conselheiros, Deputados, Senadores, etc.” (EIZERIK, 1978, p. 105).

Um fator que inibe o registro de mais bacharéis em Direito nos quadros da OAB é o exame de ingresso para equela entidade, o qual apresenta elevado índice de reprovação, em torno de a 80 a 90 %, conforme dados divulgados pela própria Ordem dos Advogados do Brasil.

Polêmicas à parte, sobre a constitucionalidade da exigência do “exame de ordem”, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 5.749/13 dispondo sobre a figura do “paralegal” com o objetivo de remediar a situação de milhares de bacharéis em Direito reprovados naquele exame, para que possam trabalhar como auxiliares e assessores de advogados. Referido projeto de lei já foi aprovado na Câmara dos Deputados e tramita, atualmente, no Senado Federal, com grande chance de aprovação e posterior sanção pelo chefe do poder executivo federal. Este projeto é, na realidade, a legalização de uma situação fática que ocorre há muito tempo, em consequência da expansão desmesurada da oferta de cursos de ensino jurídico no Brasil.

3. Interesses ideológicos embutidos no ensino jurídico

A expansão da oferta de ensino jurídico deve ser analisada não apenas associada ao comportamento dos números, mas também como estratégia do Estado de ministrar para o máximo possível de sua população, por meio do currículo dessa atividade escolar, a ideologia jurídica como sendo dominante para, assim, multiplicar a quantidade de seus difusores:

“Isto não é fruto de ingenuidade. Pelo contrário, este tipo de ensino cumpre, quase sempre, numa função política direta, uma tentativa de produzir conhecimentos ideologicamente neutros e desvinculados de toda preocupação sociológica, antropológica, econômica ou política […] Esta pseudo imparcialidade do ordenamento funciona como pretexto para a socialização de um conjunto de valores aceitos pelo Estado”. (FARIA, 1988, p. 68).

O sistema normativo positivado pelo Estado é o terreno mais fértil para a semeadura dos valores por ele aceitos, sendo por isso correto referir-se ao Direito como uma instância ideológica a serviço dos interesses da classe dominante, tornando com isso perceptível a relação entre o ensino jurídico e o poder político vigente na sociedade:

“Há mesmo uma relação entre o saber jurídico transmitido acriticamente nas escolas de direito e o poder político, na medida em que aquele saber reproduz simbolicamente as relações instituídas pelos grupos que detêm a hegemonia na sociedade, possibilitando a transmissão e a retransmissão da ideologia que condiciona o imaginário social dessas relações, relegitimando-as pelo consenso em torno de um discurso jurídico oficial”. (MACHADO, op. cit. p. 176).

Consegue-se com isso, ao mesmo tempo, entronizar a ideologia jurídica e caracterizar o Direito, ideologicamente, como instrumento de transformações sociais, quando o seu intento velado (ou dissimulado, como diz Althusser) é manter essas mesmas condições.

Tendo o Direito essa capacidade de permeação de valores, caberia questionar – embora a resposta seja evidente – se não se conseguiria por seu próprio intermédio introduzir em seus códigos valores de natureza revolucionária do modo de produção capitalista.

Para que a resposta não fique apenas implícita, tomemos emprestadas algumas palavras para explicitá-la:

“É absolutamente falso supor que se possa realizar a revolução socioeconômica por intermédio da lei e da jurisprudência, que são, como se sabe, mecanismos tradicionais de controle e conservação do status quo”. (MACHADO, op. cit. p. 29).

A representação ideológica elaborada pela classe dominante de que o Direito expressa a vontade geral com o objetivo de garantir o bem comum pautado pelos princípios da isonomia e da legalidade impregna o ensino jurídico e ao mesmo tempo diminui a importância da escola para a luta de classes, deslocando o foco para o Direito (Aparelho ideológico de Estado jurídico) e os órgãos repressores do Aparelho de Estado, “que sempre foram mecanismos de manutenção e não de mudanças do status quo social e político […].” (MACHADO, op. cit. p. 9).

O primado da ideologia jurídico-moral já havia sido percebido por Althusser, que o realçou ao lado do primado do Aparelho escolar nas formações sociais capitalistas:

“Da mesma forma que, precedentemente, dissemos que, nas formações sociais capitalistas, era o Aparelho ideológico de Estado escolar que desempenhava o papel dominante na reprodução das relações de produção, assim também podemos propor que, no campo do que chamaremos provisoriamente de ideologias práticas, é a ideologia jurídico-moral que desempenha o papel dominante”. (ALTHUSSER, op. cit. p. 192).

A ideologia jurídico-moral mostra-se dominante por fazer-se presente em todas as relações – negocial, conjugal, profissional, de vizinhança, acadêmica, etc. – o que permite concluir pela sua preponderância em relação às demais ideologias, notadamente a moral e a religiosa, que já viveram os seus tempos de glória nos modos de produção dominantes havidos antes do capitalismo, ou seja, o escravismo e o feudalismo, respectivamente.

A dominância da ideologia jurídica foi projetada pelos intelectuais da revolução francesa como instrumento de luta dos burgueses, que com o seu poder econômico retiraram poder político da nobreza e do clero, o que levou Althusser a afirmar que “a matriz da ideologia burguesa dominante é a ideologia jurídica, indispensável ao funcionamento do Direito burguês. O fato de ser possível encontrá-la por toda a parte indica que se trata da ideologia dominante.” (ALTHUSSER, op. cit. p. 245).

Percebe-se, neste sentido, que tanto nos negócios quanto nos conflitos, o discurso dominante não mais é o da honestidade, que caracteriza a ideologia moral, nem o do castigo divino, fundamentado na ideologia religiosa, mas sim, o da cláusula penal, com multa, juros e atualização monetária, sem nos esquecer da indústria do dano moral – discursos típicos da ideologia jurídica burguesa.

A expansão do ensino jurídico carrega consigo a expansão do mercado imobiliário, do mercado de prestação de serviços e, principalmente, da indústria cultural jurídica, com suas mercadorias e seus fetiches que são utilizadas por advogados, estudantes, magistrados, professores, delegados, escrivães, promotores e estagiários, indistintamente, tanto nas atividades de ensino quanto nas atividades de operação ou de movimentação dos aparelhos policial, ministerial e jurisdicional:

“Outro sintoma da indústria cultural nessa área pode ser apontado na imensa comercialização de obras jurídicas, independentemente do seu conteúdo científico, tanto impressas quanto veiculadas por meio de CR-ROM, bem como na expansão competitiva do mercado dessas obras, com a numerosa publicação de manuais, monografias de pura glosa do direito positivo, trabalhos resumidos de doutrina sobre a dogmática jurídica ou simples comentários e repertórios de jurisprudência, sempre com orientação essencialmente prática e forte apelo comercial”. (MACHADO, op. cit. p. 64).

A quantidade de cursos de Direito no Brasil atingiu um volume desproporcional em relação aos demais países, pois a somatória desses cursos em todos os outros países alcançava no ano de 2011, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o total de 1.100, enquanto que no Brasil existiam, conforme censo da educação superior publicado pelo INEP, 1.121 cursos semelhantes.

É possível constatar na tabela abaixo a oferta desproporcional desta atividade escolar no Brasil em comparação com alguns países de maior expressão econômica mundial:

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É correto sustentar, portanto, a tese de que há interesse da classe dominante em fazer parecer – ou seja, representar – que entre as ideologias praticadas em uma formação social capitalista, é dominante a ideologia jurídica, a qual faz com que os conflitos entre os sujeitos deságuem no órgão judiciário do Aparelho repressor de Estado, fortalecendo a figura do Estado como Sujeito da ideologia dominante.

Adicionalmente, o Aparelho ideológico de Estado da informação também contribui para isso com as suas doses diárias de vangloriamento do Direito e das satisfações de direitos de indivíduos – leia-se, portanto, direitos individuais – conquistados por meio do judiciário.

Essa canalização dos conflitos sociais e interpessoais para o órgão jurisdicional produziu nos Estados Unidos a partir da década dos anos de 1960, na Itália e no Brasil a partir dos anos de 1980, o fenômeno conhecido como “explosão de litigiosidade”, o qual pode ser definido como “uma preferência social em resolver os conflitos mediante a atuação de um terceiro (Estado), titular do poder coercitivo e da violência legal.” (LUCENA FILHO, 2011, p. 6).

O órgão judiciário do Aparelho repressor de Estado como depositário dessa litigiosidade foi elevado – aos olhos dos sujeitos de direito – à condição de “super órgão” capaz de resolver todos os problemas da sociedade, o qual tem com isso desfrutado de legitimidade para reivindicar a expansão de suas instalações físicas e de seus recursos humanos. Isso não tem sido suficiente, entretanto, para dar cabo da explosiva busca por seus serviços, caracterizando, por conseguinte, a sua própria crise:

“É possível detectar uma supervalorização dos métodos oficiais distribuidores de justiça, fato este que se concretiza com o depósito de esperanças individuais e coletivas no Poder Judiciário, visto como um verdadeiro super órgão capaz de resolver todas as diferenças existentes entre os indivíduos. No descrito contexto edifica-se a crise do sistema judicial brasileiro, especialmente pela sua incapacidade em atender aos anseios dos jurisdicionados e a explosão de litigiosidade na sociedade brasileira”. (LUCENA FILHO, op. cit. p. 7).

Entre os vários fatores que podem contribuir para a ocorrência desse fenômeno são mencionados o cultural (a cultura demandista de um povo), o enfraquecimento dos laços comunitários e dos compromissos de honra na gestão da vida coletiva, a influência dos meios de comunicação, e até mesmo o crescente número de advogados na sociedade. (LUCENA FILHO, op. cit. p. 7).

Dedicando-se o ensino jurídico, quase que integralmente, ao direcionamento do estudante para a solução de conflitos perante o seu órgão judiciário, é coerente considerar que a quantidade de advogados em uma sociedade seja um fator tributário da explosão de litigiosidade.

Além disso, a ideologia jurídica liberal proclama, formalmente, alguns valores universais e inquestionáveis, como justiça, liberdade e igualdade, tornando-a assim mais palatável para os sujeitos de Direito, o que inclui a todos, uma vez que o Direito deixou – há muito tempo – de discriminar entre servos e senhores, entre escravos e amos, entre capitalistas e proletários, pois todos passaram a ser sujeitos de Direito, iguais perante a lei, uma vez que o Direito iguala os desiguais, formalmente.

A ampla disseminação da ideologia liberal por meio do ensino jurídico ocorre, também, como um aceno para a classe trabalhadora, pela difusão do discurso da imparcialidade do aparato judiciário do Estado, locus para onde a classe dominante deseja que sejam canalizadas as reivindicações político-econômicas dos trabalhadores, em vez de fazerem isso por meio da luta deflagrada pelo movimento proletário na linha de produção, chegando até mesmo a interrompê-la, com greves inclusive, algo inaceitável para o processo de acumulação de mais valia produzido pelo trabalho.

É mais vantajoso para o capital enfrentar a luta de classes em um processo judicial – contando com a ajuda do formalismo do Direito – do que na linha de produção das fábricas.

Althusser anota que “o formalismo do Direito não tem sentido a não ser enquanto se aplica a conteúdos definidos que estão, necessariamente, ausentes do próprio Direito, que são as relações de produção e seus efeitos.” (ALTHUSSER, op. cit. p. 85).

Cumulativamente, o formalismo jurídico contribui para a ocorrência de alguns tropeços procedimentais (alguns deles suficientes para perder a causa) por parte de advogados menos experientes e menos ambientados com a rotina do judiciário. A este risco não se expõe a classe burguesa, que em função do seu poder econômico consegue contratar advogados com pleno domínio dos procedimentos formais do Direito.

Nessa perspectiva reside a importância do ensino jurídico, formatando ideologicamente os futuros movimentadores e operadores dos órgãos do Aparelho repressor de Estado (polícia, ministério público e judiciário), principalmente advogados, que em favor dos seus clientes se empenharão em reivindicar direitos junto ao Estado, legitimando-o e, ao mesmo tempo, desnutrindo em si próprio, qualquer motivação para questionar o Direito, o seu órgão positivador e a existência do próprio Estado:

“Essa formação despolitizada do jurista não permite também o questionamento da legitimidade do poder normante e, sequer, visualização do dilema que se apresenta quando tem que optar entre uma aplicação passiva do conjunto normativo positivado e uma atuação crítica e contestadora desse mesmo conjunto de normas, no que ele tem de casuístico e opressor”. (MACHADO, op. cit. p. 150).

CONCLUSÃO

Tendo tecido todas essas considerações a respeito do ensino jurídico, pode-se concluir que a expansão explosiva de sua oferta nos últimos vinte anos associou interesses econômicos da iniciativa privada com interesses político-ideológicos de difusão de valores da classe dominante, a qual utiliza essa atividade escolar para disseminar a sua ideologia contida nos códigos de leis, os quais são a matéria-prima do treinamento a que são submetidos, curricularmente, os seus estudantes – potenciais futuros movimentadores e operadores dos órgãos civis do repressor de Aparelho, o qual tem, por sua vez, a finalidade de garantir a reprodução das relações de produção do modo de produção capitalista.

 

Referências
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
EIZIRIK, Nelson Lacks. O liberalismo econômico e a criação das disciplinas de direito comercial e economia política. 1978, p. 105. In: BASTOS, Aurélio Wander. (Coord.). Os cursos jurídicos e as elites políticas brasiIeiras: ensaios sobre a criação dos cursos jurídicos. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1978. p. 95-128.
FARIA, José Eduardo. Apud RODRIGUES, Horário W. Ensino jurídico: saber e poder. 1988, p. 68.
GRECO, Leonardo. O Ensino Jurídico no Brasil. 2005. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 29 maio 2014.
LUCENA FILHO, Humberto Lima de. A cultura da litigância e o poder judiciário. 2011, p. 6. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=84117275be999ff5>. Acesso em 15 fev. 2014.
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2009.
SAVIANI, Demerval. A expansão do ensino superior no Brasil: mudanças e continuidades. 2010. Poíesis Pedagógica, Catalão, v. 8, n. 2, ago/dez. 2010. Disponível em: <http://www.revistas.ufg.br/index.php/poiesis/article/view/14035>. Acesso em: 11. maio 2014.

Informações Sobre o Autor

Luiz Caetano de Salles

Advogado, Bacharel em Química, Bacharel em Direito, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Química e em Educação, Doutor em Educação, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (MG)


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